![001.png 001.png]() | MARÉ-VIVA Não contava contigo e tu vieste Vestido de pecado e de virtude; Puxaste-me pr`a ti num gesto rude, Mas foi de mel o beijo que me deste
E foste-me roubando o que pudeste, Enquanto eu te roubava quanto pude... Sabemos que nenhum de nós se ilude; Se te aconteço, tu me aconteceste!
Tão longe estamos já da juventude, Ambos loucos - bem sei, bem mo disseste... -, Como águas presas num qualquer açude
Que ouso transpor, porquanto o transpuseste... Que ninguém mais confine e prenda ou mude A louca maré-viva que nos veste! |
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UM SONETO PARA POSEIDON Não sei que chamar-te, mas sei que te sinto Por vezes meu escravo, por vezes meu rei, Se colhes do favo quanto mel te dei Perdida, encantada, no teu labirinto...
Nas veias do espanto, sorvendo esse absinto Da taça em que o guardas, que ergui, que provei... Ah, quando me tardas - que és de ouro... e de lei! - Por qu`rer-te e provar-to, me rendo e consinto
Que inteira me dobres, a mim, que, selvagem, Desbravo sozinha mil rotas do p`rigo Das ondas mais bravas - não mais que a coragem! -,
Por rotas convulsas de crime e castigo, Na barca da vida que já ruma à margem Da louca voragem que enfrento contigo... | ![002.png 002.png]()
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| A PERFEITA OCUPAÇÃO DAS HORAS No corpo inacessível de um poema Mora o ritmo, sereno ou agitado, Que fala da virtude, ou do pecado, E faz com que escrevê-lo valha a pena...
Essa alma musical que assim me acena A seduzir-me o corpo já cansado Virá trazer-me o verbo inesperado Que me preenche e torna mais serena...
E vai-se esse vazio que então crescia E fica-me o fruir do que se faz Nas noites renovadas como auroras
Em que me torno amante da Poesia E concebo o poema que me traz Essa perfeita ocupação das horas... |
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PUZZLE Pedaços de mim mesma pelo mundo, Colinas, rios, mil coisas como eu Dispersas pela terra e pelo céu E prontas a usar cada segundo... Este conhecimento é tão profundo E tão concretamente em mim nasceu, Que em mim, ganhou raiz, depois cresceu E tornou-se o meu EU, lá bem no fundo... Este supremo dom mo lega a Vida E, faça o que fizer, nunca estou só Pois cada peça cumpre o seu papel; Por mais que nalgum dia ande perdida, Resolvo o puzzle, desenredo o nó, Retomo o meu lugar no carrossel... | ![004.png 004.png]()
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| COEXISTÊNCIA(S) Saber-te, sem perder-te, nem ganhar-te, coexistente com quem sempre fui, e, sem me dispersar, multiplicar-te nas águas desse rio que em mim conflui Pr`a submergir-me, ou pr`a tornar-me parte do mar sem dimensão do que se intui, o mesmo que engendraste pr`a afogar-te, esse, o que em espanto e vagas te dilui... Neste entretanto, já nem sei que mar, nem que inventado rio me afoga assim, depois de calmamente me banhar, Mas há sempre um que nasce e morre em mim e exactamente aonde eu desaguar terá, na foz que sou, chegado ao fim... |
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MEU PINHEIRO-MANSO, MEU FIGUINHO-LAMPO... Meu celeiro farto, meu pinheiro manso Que choras se parto, calo ou me desdigo, Meu pinheiro amigo, meu seguro abrigo Onde, havendo p`rigo, me escondo e descanso
De um bulício antigo que nem sempre alcanço; Porta sem postigo, falta sem castigo, Figueira onde o figo sabe que o bendigo Por ser só comigo que dança, se eu danço... Doce figo lampo que uma mãe-figueira Me of`receu trigueira, lesta, rotineira E que ao dar-se inteira se me foi tornando Materno alimento, sangue, irmã ceifeira Da espiga engendrada nesta fértil leira Tão mais derradeira quão mais vai faltando... | ![006.png 006.png]()
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