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Revista Inominável

A revista para lá da blogosfera!

Seg | 22.10.18

Por terras nascidas do mar | Relatos de um Verão no Outono e os extremos da Vida

Outubro é sinónimo de Outono, mas nesta edição ainda vos escrevo durante o Verão e no preciso dia em que deveria estar a voltar a ser mãe pela segunda vez, segundo os entendidos que se baseiam na ciência das ecografias e de calendários menstruais, e não no das luas (já passei pela mudança de duas e “desta é que é!”). Pois é, o meu segundo rapaz não quer saber da sabedoria popular e está a sentir-se bem no seu T0 com ar condicionado sempre na temperatura certa, a fazer o pino há 12 semanas e a dançar sapateado nas minhas costelas... para quê ter pressa com estas excelentes condições, certo?! Claro que, se ele não quiser escolher uma data a seu gosto, foi já escolhida uma à disponibilidade de terceiros, que ainda querem aproveitar férias, mesmo com um ar condicionado sem regulador automático...

Assim, achei por bem escrever-vos já, pois não sabemos qual o humor daquele que pode vir a agraciar-nos com a sua presença de forma não voluntária... quem sabe não gosta do Verão cá fora e, não sabendo falar, se manifeste com um choro mal disposto castrador de inspirações de escrita...!

Deixo a descrição da aventura materna na ilha verde para o próximo número, e ofereço ainda um resquício de Verão nas páginas outonais da nossa Inominável. Tinha-vos falado de festas a que ainda iria assistir, certo? E assim foi! Garanti até a alcunha carinhosa da minha cara-metade de “bucha techno”, depois de ter estado a dançar até madrugada ao ar livre, ao som de um DJ bem inspirado, confortável com a minha barriga enorme e devorando o calor de uma noite tropical, privando-me apenas de saltar junto com as centenas de pessoas que vibravam com a batida. A este DJ precedeu o Paulo Gonzo e, embora fosse um concerto de entrada livre, o recinto é fechado e toda a gente é revistada na entrada como forma de prevenção de desacatos estimulados pelo álcool inevitavelmente ingerido nestes eventos. E todas as saídas que vão dar à via rápida têm carros-patrulha para se certificarem de que os condutores são cool, embora grande parte dos festivaleiros dormissem já ali ao lado no parque de campismo, que fica sobrelotado nesta altura do ano.

A festa mais badalada foi em Ponta Delgada, intitulada “White Ocean” - ou “Festa Branca”, mas prefiro a versão inglesa. “Festa Branca” faz-me sempre pensar numa festa cheia de gente a aproveitar os prazeres proibidos de drogas ilegais, embora na verdade assim se chame por (quase) toda a gente ir vestida de branco. Cumpri a tradição com um dos poucos vestidos que ainda me servem, e lá fomos até à capital da ilha, apinhada de palcos (150 para ser precisa), bares e restaurantes a vibrar com música, roulotes de comes e bebes, imensos turistas bronzeados e a maioria embriagados, e pessoas pela rua fora a comerem onde calhava, com aquela descontração típica de quem não tem horas ou obrigações com que se preocupar. A noite bem quente, o mar sossegado, o cheiro a sal no ar, e aquela latente atmosfera de ilha tropical que seduz quem cá vem nesta época... Foi mais uma noite de música no pé e alegria no coração, onde não faltou o fogo-de-artifício!

 

Embora Ponta Delgada seja o centro de quase tudo na ilha, os festivais proliferam por todo o lado com cartazes ambiciosos, como é o caso da Ribeira Grande, que apostou em nomes internacionais no festival Monte Verde mas onde já não me atrevi a ir porque a afluência enorme era incompatível com a minha condição de rotunda humana com bexiga do tamanho de uma ervilha. Mas amigos que lá foram adoraram, o que me deixou o “bichinho” para o próximo ano... Ribeira Grande, para além de ser mais uma cidade da ilha, surpreendeu-me por uma característica que eu não imaginava por cá o que prova que, embora estejamos convencidos de que não temos ideias pré-concebidas, não é bem assim! Na Ribeira Grande existe uma grande comunidade gay, e não é nada invulgar vermos homens vestidos de mulher, e com mais empenho do que muitas! Certamente que nem todos são travestis, muitos estarão em processo de mudança de sexo, e outros tantos são simplesmente assumidos na sua tendência sexual mas confortáveis no seu género e na sua roupa masculina. Em Inglaterra era normalíssimo existir mais do que uma comunidade assim, mas não o esperava cá, talvez por ser uma ilha e as pessoas estarem mais expostas à crítica, natural num meio pequeno. Mas ainda bem que assim não é, e que as pessoas sentem a liberdade de viverem a sua vida e serem verdadeiras consigo mesmas!

Existe até mesmo uma ilha que é conhecida pela sua particularidade: São Jorge, a “ilha dos hippies”! Faz-me imaginar uma ilha com pessoas ao estilo rastafari, vivendo em comunas e envergando calças coloridas de linho, enquanto crianças correm descalças à sua volta, a música de Bob Marley no ar... Claro que não será nada disto, existirá talvez uma maior casualidade na maneira de estar das pessoas em geral, mas a grande magia das coisas reside em imaginá-las! E algumas inspiram-nos na vida real, como por exemplo o simples facto de existir um parque de merendas mesmo ao lado da minha casa e do caminho que desce até ao farol e onde está agora, durante o Verão, uma roulote onde se pode beber um café, comer uma sandes ou um bolo, beber uma cerveja ou comer um gelado. A este parque vem parar todo o tipo de pessoas de diferentes nacionalidades - a muitas das quais servimos de centro de informação turístico - com maneiras de estar e de reagir ao ambiente à volta bastante distintas. Há poucos dias estava um grupo que bem podia ter vindo da minha ilha imaginária, rastafaris a praticarem números circenses, rodeados de verde e azul, oferecendo-nos um espectáculo gratuito enquanto bebíamos o nosso café.

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Mas nem tudo no Paraíso é uma maravilha, e vivi uma experiência que me entristeceu bastante. Existe uma grande taxa de depressão e também de suicídios na ilha, e desde que existe a via rápida que liga a ilha quase de uma ponta à outra muitas pessoas desesperadas têm optado por parar o carro junto a uma das muitas pontes aqui do Nordeste, e saltar para aquilo que consideram ser a libertação do que as atormenta. E foi assim, num fim de dia em que vínhamos da Ribeira Grande, que nos deparámos com este tipo de situação: o carro estava parado com os quatro piscas ligados, e um jovem aparentemente pouco mais velho que o meu filho estava inclinado na barreira de segurança, com um sapato na mão e com os ombros e a cabeça descaídos como se carregasse neles todas as dores do mundo. Posso afirmar que senti o meu coração partir-se perante aquela imagem desoladora, tamanha tristeza a contrastar com a beleza da natureza...! Parámos o carro mais à frente e imediatamente ligámos para as autoridades. O meu filho, no seu fervor dos 20 anos, queria sair do carro e segurar no rapaz, mas a sua vontade foi refreada devido à minha condição de grávida (embora honestamente fosse também esse o meu impulso, o de tentar ir demover o jovem da sua intenção. Mas os 43 anos trazem alguma ponderação…). Muito pouco tempo depois passaram os bombeiros, numa resposta rápida e já habituada a estas ocorrências, infelizmente. Uma amiga nossa que é bombeira voluntária disse que ele não conseguiu, nesse dia, terminar com a sua vida. Mas dois dias depois tentou de novo... e não sabemos se o concretizou, mas com tamanha determinação conseguirá (ou conseguiu) levar a sua avante. O meu filho ficou a pensar nesta e noutras situações semelhantes, com um misto de revolta e tristeza, não entendendo a ausência da nossa intervenção física - pelo menos a do meu companheiro que, tendo já sido comandante de bombeiros e tendo resgatado cadáveres em vários cenários, em mar e em terra, mantém uma aparente frieza e auto-controle que um jovem ainda não consegue entender. Mas esta revolta fê-lo pensar que a prevenção devia começar em entender o porquê da taxa elevada de depressão na ilha, e que um estudo a fundo devia ser realizado. Aconselhei-o a arranjar uma forma activa de contribuir para uma possível solução, e a transformar a sua energia numa força positiva...!

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E assim me despeço, com esta reflexão que pode ser aplicada a vários aspectos da nossa existência... das festas à depressão falei-vos de temas opostos mas que fazem parte da vida, seja em que lugar do mundo for, até mesmo nos sítios a que chamam paraíso... Mas na próxima edição falarei de Vida e Esperança certamente, especialmente porque será também dedicada a uma época particularmente direccionada para as nossas melhores emoções. Mas, até chegar essa altura, desejo-vos um Outono inspirador!

 

Com amor, da ilha.

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Publicado em Inominável nº 16

por Inês Rocha, autora do blog Alquimia do Momento

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