Por terras nascidas do mar | Fenómenos meteorológicos e tradições sem Tempo #2
(continuação)
No momento presente, com a minha mãe já de volta ao continente (com muita pena dela), fazemos passeios mais arrojados, por caminhos mais sinuosos e desafiantes, vantagens de viver com alguém que conhece os segredos da ilha e faz da natureza o seu ambiente de trabalho: percorri pontos tão altos que podemos ver o lado norte e sul da ilha, embrenhei-me na natureza no mais lindo parque florestal que já vi, e fui visitar o farol fazendo um caminho tão íngreme que a subida deve ser bastante semelhante a uma via sacra! Tenho também treinado o olho para ver as aves, como os estorninhos, que cobrem o telhado da minha casa - e cantam como se estivessem na audição do “The Voice” -, as corujas e as águias de asa redonda que por aqui abundam, e que nesta altura começam a mudar de comportamento, a prepararem-se para o ritual de acasalamento.
A aparição inusitada de animais já começa a ser corriqueira; um destes dias, estava eu a beber um café no terraço a aproveitar o sol, apareceu-me um pombo-correio identificado com a respectiva anilha. Não trazia nenhuma mensagem, mas suponho que estava cansado e achou que ali era um bom sítio para recuperar energias. Ficou no chão, curioso, e foi literalmente a andar para dentro da minha cozinha. Deu uma voltinha, observou tudo, e saiu pelas suas próprias patas, subindo um a um os degraus que levavam ao portão que gentilmente lhe foi aberto... e lá foi ele a caminhar e a aproveitar o sol de sábado à tarde! Excesso de confiança pombalina cheia de graça...
Tenho também, a nível gastronómico, provado uma maior variedade de peixe - embora haja uma época para determinadas espécies, tendo ainda muito para descobrir - o que me faz sentir exoticamente saudável, até que compro um pão alentejano (pão alentejano é pão alentejano!) e o despacho com uma boa camada de manteiga açoriana...
Fiquei a par de algumas tradições típicas de cá; uma delas é bastante curiosa, chama-se “o menino mija” e consiste em, na época das festas natalícias, irmos a casa dos vizinhos que aguardam visitas a qualquer momento, tendo bebida à disposição, tal como algo para comer. Assim nos aconteceu e acabámos por entrar na casa de um casal que eu nunca vira, apesar de vivermos relativamente próximos e os nossos maridos serem colegas de trabalho; de repente desfilavam bebidas e doces à minha frente...”coma e beba, esteja à vontade!”. O meu filho não se fez de rogado - não conhecer as pessoas era apenas um pormenor - mantendo a descontracção típica de adolescente permanentemente esfomeado. Já uma amiga minha, que passava uns dias de férias em nossa casa na altura, não conseguia disfarçar o espanto, nem o receio de parecer lambona/continental abusadora, até que lhe foi explicado que esta hospitalidade e naturalidade fazem mesmo parte da essência açoriana. Foram de uma hospitalidade enternecedora, e ainda trouxe para casa um saco de tangerinas tão doces como o licor que se tinha bebido. Assim me estreei na tradição, mas apenas como visita, não tendo sido anfitriã, até porque estava ocupada a fazer de guia turística para a minha hóspede.
(Nota: foto dos romeiros retirada da página http://secretariadobiblico-sm.blogspot.pt)
Uma outra tradição é a dos romeiros na época da Páscoa: vários grupos constituídos por homens das mais diversas idades, incluindo bastante jovens, caminham quilómetros de distância, faça chuva ou sol, de cajado na mão e manto pelas costas, cantando as suas orações. É uma tradição tão séria que os romeiros têm direito a dispensa do trabalho pelos dias que forem necessários para cumprirem a sua missão. As vozes juntas têm uma excelente projecção, e de vez em quando ouvia-os a passar, dando-me a momentânea sensação de viver num lugar sem Tempo... A devoção está tão enraizada que a comunidade de emigrantes micaelenses no Canadá mantém viva a tradição, sendo transmitida para as novas gerações.
Entretanto a Primavera já chegou e haverá algo mais para descobrir! Assim como novidades da nossa vida na terra das vacas felizes, ilustradas com fotos mais floridas certamente! Aguardem o próximo número!
Com amor, da ilha.
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Publicado em Inominável nº 13
por Inês Rocha, autora do blog Alquimia do Momento