Chá sob o guarda-sol
Um pacotinho de açúcar a ser vertido numa chávena de chá fervente.
O cantinho de papel, que nem há nada foi rasgado com a ajuda de dois dentes, balança por entre os vapores na iminência de se precipitar no líquido mate, mas é seguro com dois dedos e amarrotado junto com o resto do pacote.
Dois dedos de unhas envernizadas de vermelho e nem uma lasca, um descuido, nada mais que o verniz rebrilhando na pele lisa das mãos, um castanho muito leve que é também a cor dos braços nus: como se o sol se tivesse descuidado apenas o tanto que desse àquela pele aquele tom levemente tisnado.
Maria do Rosário a tomar o chá da tarde.
O chá muito quente escorre-lhe nas paredes do corpo, e Maria do Rosário frui esse conforto vagamente doloroso, enquanto mantem a chávena dependurada, muito quieta, muito direita, a dois palmos da mesinha, uma peça engraçada que ela um dia trouxe de uma feira, metal reciclado de bidons de gasolina que a artesã lhe disse que na aldeia havia demasiados a alimentarem tractores e motores de rega.
Maria do Rosário completamente sozinha desde o dia vinte e sete.
E ao poisar a chávena, faz-se um ruido de loiça contra loiça que se repercute pelo metal da mesa, e não terá sido mais do que o silêncio a fazer-se notado.
Maria do Rosário recosta-se nas almofadas em tons de verdes e azuis, riscas alternadas muito debotadas que ela ajeita de modo que a cabeça lhe repouse no fofo que é a espuma com que um dia, faz já muitos anos, encheu cada uma e, depois, fechou-as com uns pontarelos de linha e assim tinham ficado, até agora.
Maria do Rosário sozinha desde aquela quinta-feira.
Ninguém mais a quem possa dizer: esta ou este é de família. Nem tio ou primo ou os correspondentes no feminino, e filhos nunca os pariu. Que ela nem sequer teve um aborto. Nunca ocupou e convenceu-se, até, de que era estéril, se bem que soubesse que nunca tinha ido para homem desprevenida, ou, na hora do desfecho, ela não permitia que se derramassem nela humores de macho. Tinha sido assim, mesmo com os dois maridos, esses que, ainda que estivessem vivos, e não estavam, nem assim seriam de família, que marido não teria nada do seu sangue, nem dos seus genes.
Maria do Rosário está só no mundo desde quinta-feira e hoje é uma sexta-feira solarenga do mesmo Maio, na semana seguinte.
Ela que se recosta de olhos semicerrados a saber que o chá arrefece.
Do lado do mar, sopra agora uma aragem ligeira e o pano do guarda-sol balança, levezinho, sobretudo o tecido que se lhe dependura em toda a volta qual enfeite.
É um guarda-sol vermelho, pequenino e novo.
Maria do Rosário adquiriu-o na tarde do enterro.
Que ela, depois, fora caminhando sem o braço da Clotilde a deixar-lhe suores naquele de-braço-dado que a outra tinha insistido durante a missa de corpo presente e no cemitério.
Maria do Rosário disse-lhe: Clotilde, preciso de ficar sozinha. Já estava a cova quase tapada e ela iria ainda despedir-se dos outros acompanhantes. Tinham ido poucos. Não se incomodara a pegar no telefone para dizer a um e outro da lista que a mãe tinha na mesinha de cabeceira: olhe, morreu hoje, eram quase dez horas; o funeral é amanhã às quatro. E indicaria também o cemitério. Não o fizera. Deixara que cada um soubesse, se soubesse, e muitos nem teriam sabido. Diria, como disse: obrigada por tudo, mas estou a precisar de ficar comigo. E jogara-lhes beijinhos com os dedos que passara sobre a boca que não tinha pintado.
Clotilde decerto que iria encontrar a oportunidade de lhe dizer que tinha sido de muito mau tom este seu modo, mas Maria do Rosário caminhara rua abaixo e não lhe dera ouvidos.
Encontrara o guarda-sol, meio aberto, meio fechado, no chão de uma montra, e sentira-o tão abandonado quanto ela se sentia, depois que tudo tinha terminado. Entrara na loja, e ficara à espera que o empregado despachasse um senhor vestido com um fato num alinhado creme de muito bom corte. O senhor comprava garrafas e garrafões e tintas e pincéis e Maria do Rosário foi-o adivinhando de calções e camiseta de alcinhas a pintar os desvãos da sala e da cozinha.
Era uma loja com ar de drogaria antiga, e o guarda-sol estava jogado na montra entre cosméticos de marca duvidosa e latas de tinta.
O empregado colocou o guarda-sol num saco de pano com uma alça que ela jogou sobre o ombro esquerdo nem sabendo que, desse jeito simples, iria derramar cores de sangue sobre o casaquinho preto que, a mando, pusera por cima do vestido.
– Tu coloca ao menos uma écharpe sobre os ombros, tinha-lhe dito Clotilde a vê-la de vestido branco muito decotado.
E ela tinha vestido o casaquinho.
Que lhe daria um tom de luto, explicara-lhe Clotilde, sempre muito ciosa desses pormenores.
Maria do Rosário volta a molhar a garganta em mais um poucochinho daquela infusão de ervas variadas a que tinha adicionado uma raspa de gengibre fresco. A brisa de há bocado sopra mais intensa, mas nada que se assemelhe ao que se deu no dia do enterro.
Foi no momento mesmo de o caixão descer à cova. Maria do Rosário lembra-se de ter reparado como a terra era fofa e castanha: terra boa para sementeira, tinha pensado, ia o féretro descendo, e ela nem um arrepio, um desgosto, um pensamento de gratidão ou outro que a fizesse ligada àquele momento; nem uma lágrima que lhe escorresse. De longe, chegava o ruído dos carros, mas ali era o silêncio mal cortado pelo respirar de cada um e pelo roçagar das cordas na madeira do caixão que a agência funerária escolhera com gravações prateadas; ela tinha dito: deixo ao vosso critério, depois de terem conferenciado sobre preços.
Foi no momento de se ouvir o baque surdo erguendo-se lá do fundo do buraco. Nesse momento mesmo, o ar rebentou num vento a soprar de norte, intenso e fresco, quase gelado no decote que lhe deixava o peito descoberto apesar do casaquinho.
Resmalharam as folhas dos ciprestes e pelo chão ergueram-se folhas secas e cacos leves; e as gravatas de alguns presentes foram resguardadas junto ao peito por mãos apressadas, e esvoaçaram as écharpes de duas senhoras que Maria do Rosário não conhecia senão de vista.
Foi nesse momento que a mão de Clotilde se fez mais pesada no seu braço, que a outra sabia que aquele vento, inopinado, era um sinal dos deuses.
Não o saberá nunca Maria do Rosário a beber mais um gole de chá já morno. E no entanto, ela desvia os olhos e ergue-os lá para cima numa busca muda. Mas lá em cima é apenas o céu que escurece no final do dia: nem alma que tivesse subido aos céus com a nortada, nem estrelinha a piscar-lhe a novidade da chegada. Nada mais que um céu de fim de tarde e a brisa que faz tremelicar o pano vermelho do guarda-sol e arrefece o chá.
(Janeiro 2016)