Anexo | Na saúde e na doença
Há três meses fui operada à coluna. Nada complicado, segundo o médico, hérnia discal cervical, entre a C5 e a C6.
E, perante isto, em que pensa a pessoa a quem vão abrir caminho pelo pescoço, logo ali abaixo do queixo, para remover um dos discos da coluna e colocar uma prótese? A pessoa pensa no avanço que vai dar aos montes de livros por ler (pilha não, a minha casa não teria altura para tal) durante a baixa.
Baixa por doença. Lá está, não se pode trabalhar até recuperar. Mas eu achei (achei mesmo) que leria a toda a hora, que colocaria em prática o desejo de qualquer viciado em livros. Os dias passaram… E todas as manhãs eu achava que podia ser esse o dia, mas não foi assim, o cansaço era demasiado para os meus próprios pensamentos, quanto mais para ler os pensamentos dos outros.
Colar cervical sempre. Olhar o mundo com altivez. Não pegar em pesos.
Não é fácil segurar o objecto livro (sim, contornei a regra dos pesos) mesmo usando um apoio, e contrariar a pressão do colar é tarefa impossível. Os braços não levantam o livro, a cabeça não inclina para baixo. Sim, eu sei que há e-readers para simplificar estas situações, e mesmo não gostando tenho um kobo para eventualidades deste género (prefiro que as eventualidades sejam viagens, mas…), no entanto a maquineta desapareceu. Obviamente que o encontrei já o médico me tinha libertado do colar. Não é sempre assim?
Bom, tudo isto parecem desculpas. Conversa para contornar o que interessa, ler. Infelizmente, nas primeiras semanas não o consegui fazer. Não só pelas dificuldades motoras descritas, mas também (acima de tudo, para ser honesta) pelo cansaço mental. Irónico. A vantagem que encontrei para enfrentar o sofrimento que me esperava não foi viável. Dias vazios numa casa cheia de livros. Todas as frases se tornaram difíceis. O esforço para entender não compensava. Experimentei audiobooks, ouvi podcasts (de livros, como é óbvio). A mente cheia de nada, as palavras eram códigos indecifráveis. Dormia, sempre na expectativa de acordar melhor. Olhem, esperando acordar viva, que um dia sem ler é uma espécie de morte. Mas acontecia o oposto. Chama-se recuperação.
Ao fim de três semanas aventurei-me num romance de fácil entendimento (esperava eu). Estava animada, menos cansada, convenci-me que podia recomeçar. Optei pelo empurrão dócil de um best seller estrangeiro, daqueles que por cá preferimos, parece que o que vem de fora é sempre melhor. Não é. Mas ajudou-me. Era tão linear que parecia que reaprendia a ler, a juntar letras em palavras e palavras em sentidos. Resultava. Li uma história. Findo esse livro, do qual já não recordo nada (antes assim), senti-me acordada para a leitura. Finalmente.
Há ocasiões para todo o tipo de livros, espantei-me. Ou livros para enfrentar maleitas. Automediquei-me.
Li tudo o que pude durante o tempo que me restou em casa. Os livros ajudaram-me a voltar, mas eu preferia ter ficado a pôr a leitura em dia. Com saúde, claro.
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Publicado em Inominável nº 16
por Márcia Balsas autora do blog Planeta Marcia