2D 3D | Lots of Balls
Hoje tenho algo especial, tanto para mim como para vós! Hoje é o dia em que me torno um jornalista de videojogos profissional! Quer dizer, não exactamente, já que não sou pago para isto e não posso realmente dizer que tenha jeito para a coisa. Veremos.
As nossas Inomináveis-Mor receberam recentemente uma proposta invulgar, mas assustaram-se imediatamente quando viram que se tratava de videojogos e chutaram para canto na minha direcção, bajulando-me com a designação de "especialista na matéria" (de videojogos). Depois de parar de rir perante tal afirmação absurda, li com a atenção devida a proposta.
Uma empresa portuguesa desenvolvedora de videojogos chamada PaddleTeam havia então contactado a revista com um pedido para testarmos e analisarmos o mais recente videojogo deles, chamado "Lots of Balls". Eles enviaram-nos magnanimamente uma cópia gratuita do produto deles na esperança de criar uma relação simbiótica connosco. Isto não é nada de anormal na indústria, antes pelo contrário, e fiquei bastante contente em poder ser parte do processo e gostei igualmente da iniciativa da empresa.
Instalei o jogo, sentei-me confortavelmente com uma folha de papel ao lado (eu tinha de fingir que era um jornalista a sério) e comecei a jogar e a tirar notas.
Depois desta introdução desnecessária, vamos à análise!
À primeira vista, o videojogo é reminiscente do Breakout, que caso não saibam é aquele jogo com uma plataforma móvel na parte inferior do ecrã que tem uma bola para destruir quadradinhos coloridos posicionados estaticamente na parte de cima. No entanto, isto pode parecer insuficiente para chamar a atenção nos dias de hoje, já que a complexidade mecânica do tal Breakout é apenas tipicamente suficiente para projectos de teor académico.
Os desenvolvedores de Lots of Balls tiveram perfeita consciência deste facto, e decidiram modernizar ligeiramente o jogo, somando-o com um outro título bastante famoso: o Space Invaders. Mais uma vez, caso não saibam, o Space Invaders é aquele jogo com uma plataforma móvel na parte inferior do ecrã que tem um canhão para destruir enxames de naves alienígenas movendo-se não estaticamente na parte de cima.
Como ambos os videojogos anciãos partilhavam algumas mecânicas, a fusão dos dois (e mais algumas coisas) gerou o "Lots of Balls", feito em Portugal, por portugueses e, em parte, para portugueses.
O videojogo tem vários níveis, sendo que os primeiros níveis servem como uma lição para uma mecânica individual. Isto faz particularmente sentido tendo em conta que em níveis mais avançados as mecânicas começam a funcionar todas ao mesmo tempo e só temos esperança de conseguirmos lidar com o caos com uma compreensão bem assente do que temos ao dispor. Portanto, um nível ensina-nos os controlos básicos, outro introduz-nos ao conceito de poderes especiais com vários efeitos possíveis (alguns deles prejudiciais) que podem ser apanhados pelo jogador, outro mostra-nos os vários tipos de inimigos e as suas características, etc.
O objectivo geral de cada nível é destruir todos os blocos coloridos existentes, ou através do contacto com as bolas, ou através dos nossos próprios disparos. Adicionalmente, temos de controlar devidamente o ambiente de modo a não perdermos demasiadas bolas, pois temos um número limitado delas. Se ficarmos sem bolas, perdemos o jogo e teremos de repetir o nível. Se uma bola atravessar o fundo do ecrã, perdemos uma bola. Igualmente, se um inimigo atravessar o mesmo limite, também perdemos uma bola. Para ajudar à festa, de vez em quando podem aparecer bombas que, se nos acertam... sim, perdemos mais uma bola.
Compreendo que este tenha sido um parágrafo particularmente difícil para o Lance Armstrong ler. Desculpa lá.
Para adicionar um bocadinho de variedade, alguns níveis mudam ligeiramente a fórmula. Às vezes não é necessário destruir blocos nenhuns, mas sim impedir qualquer bola de atravessar o "chão" durante uma certa duração, o que se torna consideravelmente mais complicado quando em vez de uma bola temos oito ao mesmo tempo. Noutro nível temos de controlar a direcção das bolas mais directamente com as setas do teclado para destruirmos os blocos num certo período limite de tempo. Ah, há um de que gostei bastante, em que o ambiente de jogo fica cada vez mais "longe" (na prática, pequeno) e portanto torna-se completamente impossível a partir de certa altura ver se a nossa plataforma está em linha com a bola ou não.
No entanto, onde o videojogo realmente brilha é quando está tudo a acontecer ao mesmo tempo, numa confusão caótica de bolas (muitas delas), blocos, poderes, inimigos, efeitos especiais e botões de teclado em que nos esquecemos sempre de carregar. Houve um nível que eu não consegui passar porque estavam simplesmente demasiadas coisas a acontecer ao mesmo tempo, e que me tiravam as bolas suplementares todas antes de eu dar por isso. Pode parecer frustrante, mas creio que a anarquia total criada por estas mecânicas paralelas a existir concorrentemente é propositada, não fosse o videojogo chamado "Muitas Bolas".
Seria injusto se não referisse o tom cómico, descontraído e bem-disposto da experiência. Cada um dos excertos de texto pode ter assim umas piadinhas e referências a cultura pop portuguesa (e até algumas piadas internas, creio, ou então simplesmente não percebi). Outrossim, em várias ocasiões podemos ouvir uma voz entusiástica a descrever algo de está a acontecer no ecrã. Essa voz fala em inglês, mas tem (felizmente!) um sotaque português algo detectável.
Normalmente acabaria aqui o texto com uma nota positiva. No entanto, como eu levo o meu recém-adoptado título de jornalista de videojogos muito a sério, sinto-me no dever de ser imparcial, e toda a gente sabe que a melhor maneira de fingir imparcialidade é cascando imensamente o produto do qual estava eu a pintar um quadro relativamente bonito.
Em termos de mecânicas, o videojogo funciona como deve ser. As teclas funcionam e respondem adequadamente. No entanto, um videojogo é muito mais do que só a sua jogabilidade em si. Sendo um utilizador com padrões bem definidos do que devem ser os mínimos olímpicos num produto profissional, tenho de notar várias falhas de design de interface, em termos de texto, botões e experiência de utilizador (tecnicamente falando, UI/UX). Tudo o que eu vou dizer a seguir vai parecer pedante e mesquinho, mas creio que é necessário, como explicarei.
Uma das coisas que imediatamente me saltou à vista foi a utilização inconsistente de fontes (vulgo, o tipo de letra). Contei umas quatro diferentes ao longo do jogo, o que estraga um bocado a percepção inicial do profissionalismo aplicado no desenvolvimento. Adicionalmente, uma das fontes tinha muito estilo, mas era demasiadamente difícil de ler. Vários menus e ecrãs estavam incompletos em termos de interacções e os elementos de interface eram igualmente inconsistentes em termos de cor e outras características visuais.
Por exemplo, o videojogo tenta agarrar-se a uma filosofia de gráficos pixelizados (aos quadradinhos) para dar a sensação do que se poderia chamar de "vintage". De facto, alguns elementos de jogo usam esse estilo, mas outros não, e outros ainda vão na direcção estética oposta, e estes contrastes chamam demasiado a atenção.
Contudo, em comparação com o que vou revelar a seguir, tudo isto era quase perdoável. O videojogo oferece duas linguagens: inglês (obviamente) e português. "Então", perguntai-vos certamente, "mas se o jogo é tuga então deveria ter uma versão em português, não?". Sim e não. Muitos leitores da revista concordarão certamente que temos uma certa responsabilidade para com tudo o que escrevemos e muitos de nós fazemos o possível para escrever orgulhosamente bem. Se se tomar a decisão de se construir um produto com a língua portuguesa, temos de ter estudado devidamente as nossas capacidades de o fazer adequadamente. Quero com isto dizer que os desenvolvedores utilizaram um tipo de letra que não permite a inclusão de acentos portugueses, o que a mim faria soar alertas vermelhos por todo o lado. Consequentemente, os textos na versão portuguesa estão cheios de erros ortográficos despropositados, que eu compreendo que são de natureza técnica, mas que um utilizador normal talvez não compreendesse.
Mas mesmo isto é quase QUASE perdoável em relação ao que vou revelar a seguir. Muito simplesmente, na continuação do parágrafo anterior, existem vários termos que não foram propositadamente traduzidos e que foram mantidos na versão inglesa, por exemplo "shoot" em vez de "disparar", "shield" em vez de "escudo", entre muitas outras. Este fenómeno não ocorre só neste videojogo ou nesta empresa. Isto irritava-me profundamente quando eu trabalhava na área, em que basicamente um colega começava uma frase em português e acabava-a em inglês. Nunca poderei levar a indústria de videojogos portuguesa a sério enquanto dois desenvolvedores não conseguirem ter uma conversa técnica inteira sem usar um único termo inglês que tenha tradução fácil para português. O problema é quando o hábito se traslada para o produto final, como aconteceu neste caso.
Tendo em conta os meus últimos dois argumentos, creio que o jogo beneficiaria da exclusão do português como idioma possível, por agora.
Podeis pensar que refiro isto por razões absurdas de nacionalismo (ou anti-nacionalismo, suponho). Derrotismo português típico e tal. Não é o caso. De um ponto de vista puramente profissional e ético, acho ultrajante que se possa sequer pensar em pedir dinheiro por um produto que está inacabado, não porque lhe faltem mecânicas de jogo, mas porque lhe falta a aparência de que é efectivamente uma experiência completa. Lembram-se da folha de papel que eu tinha ao meu lado quando comecei a jogar? Está neste momento cheia de rabiscos e comentários suficientes para prolongar este artigo por mais duas páginas.
Gostaria de concluir dizendo algumas coisas importantes: em primeiro, estou a ser demasiado perfeccionista não porque goste de ser mauzinho, mas porque acredito que a melhor maneira de as pessoas melhorarem é ouvindo pareceres sinceros. Não tive prazer em escrever isto, mas considero-o necessário para o futuro destes jovens (assumo) desenvolvedores que estão a dar os primeiros passos na indústria. Sabe-se lá, talvez levem o próximo jogo deles mais a sério depois de uma ou duas críticas mais... assertivas. Em segundo, quero que fique bem claro que nada disto é um ataque pessoal aos desenvolvedores como pessoas ou como profissionais. Acredito piamente que eles estejam orgulhosos do seu trabalho e efectivamente admiro-os por estarem a querer singrar numa indústria tão difícil. Creio até que estarão de parabéns. Por último, quero dizer que eu não sou realmente um guru na matéria e posso estar completamente errado em tudo o que eu disse, portanto o melhor seria que experimentásseis por vós próprios o videojogo (nós recebemos o jogo de graça, mas creio que é barato e dará para entreter os putos lá em casa).
Gostaria de agradecer ao Pedro Mata por nos ter contactado em nome da PaddleTeam, e por mim estarei sempre ao dispor para analisar videojogos produzidos por eles. Espero, contudo, nunca me cruzar com ele presencialmente, pois corro o risco de ser esfaqueado.
P.S.: Aparentemente, ele não me vai esfaquear. Em contactos posteriores garantiram-me que toda a crítica é bem-vinda (ufa!) e é bastante provável que a próxima versão tenha imensas coisas resolvidas e melhoradas, inclusivamente com a adição de conteúdo extra para refrescar e dar maior longevidade ao videojogo.
Links:
https://store.steampowered.com/app/780760/Lots_of_Balls/
https://twitter.com/paddleteampr
https://www.youtube.com/channel/UC7B1KOT9XZAsIQa61aDX9sQ
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Publicado em Inominável nº 15
por Rei Bacalhau, autor do blog O Bom, o Mau e o Feio